Às 6 horas e 30 minutos do dia 6 de junho de 1944, os Aliados lançaram contra o Eixo a maior operação militar anfíbia da história da humanidade. O desembarque se deu nas praias da Normandia, entrincheiradas por nazistas a ferro e fogo, e foi crucial para a derrocada dos nazistas pela Frente Ocidental. O Dia D e a Hora H foram igualmente cruciais para as lentes das câmeras de Hollywood que eternizaram nos telões o feito heroico de homens que deram suas vidas contra o totalitarismo alemão e suas abominações.
Não, nós não vamos nos referir a essa Hora H, nem a esse Dia D. Nós vamos falar de outra Hora H capturada pelas lentes de Hollywood. Nós vamos falar daquela Hora H... Sim, tirem as crianças da sala, vamos falar de sexo.
“Oppenheimer”, do badalado cineasta britânico Christopher Nolan, é um filme de contrastes. Os contrastes começam pela fotografia, o filme é dividido cenas filmadas em cores vivas e em preto e branco (como se o preto e branco per se já não fosse um contraste). A coloração determina o enfoque em dois personagens: o cientista que nomeia o filme, em imagens coloridas, e Lewis Strauss, sua nêmesis, filmado em Times New Roman, tamanho 12.
A coloração das cenas segue a separação da obra em dois capítulos: “Fissão” e “Fusão”, duas reações físicas opostas. Mas antes de qualquer coisa, o contraste que possibilita todos os outros é aquele entre a física newtoniana e a física quântica, Newton e Einstein, a quebra do paradigma, a luz que é partícula, a partícula que é luz, esta, sendo tanto a fagulha do pavio quanto o Sol da meia-noite da explosão atômica.
As tensões políticas de um mundo cingido trazem mais contrastes à trama: os Aliados e o Eixo, os republicanos e os falangistas, os comunistas e os anticomunistas. Uma fala de Ernest Lawrence, o amigo saquarema de Robert, escancara a tensão estabelecida entre seus ideais e os posicionamentos políticos do pai da bomba atômica: “Well this is America, Oppie, we had our revolution”.
Com a arte não é diferente. Vemos Oppenheimer encarar uma pintura de Picasso “A Mulher Sentada de Braços Cruzados” e ler o poema “The Waste Land” de T. S. Eliot, dois lados da mesma face modernista.
Contudo, o contraste principal deste ensaio é aquele estabelecido entre a Bomba H e a Hora H, isto é, o contraste entre a pulsão de morte e a pulsão de vida, a pulsão de destruição e a pulsão de criação. “Now I am become Death, destroyer of worlds”, a frase do texto sagrado hindu Bhagavad Gita, abarcado pelo dez vezes homérico Mahabharata (o texto tem a extensão de dez Ilíadas e Odisséias somadas), é lida por Robert, pela primeira vez, em uma cena de sexo com Jean Tatlock, seu interesse amoroso e sua amante.
Nada é à toa. Nolan, roteirista e diretor do filme, pensou em cada detalhe.
A única outra vez em que a frase é mencionada é na cena da detonação do teste Trinity. O parto da maior ferramenta de assassinato em massa já produzida pelas mãos humanas. Aqui, Nolan estabelece uma conexão com a primeira menção.
Já na primeira ocasião, o contraste entre uma frase de um texto religioso, que remete à morte, em meio ao ato sexual, gerador de vida, resulta em estranhamento. Alguns hindus reagiram de maneira mais agressiva e chegaram a clamar por boicotes contra o filme. Não sou nenhum guru, nem um profundo conhecedor das doutrinas da Índia, mas o mesmo hinduísmo carrega em si, para dizer o mínimo, uma relação ambígua entre o sagrado e o erótico. Diversos templos hindus possuem cenas de sexo cravadas em suas paredes. Não se esqueçam que foram os hindus que legaram ao mundo o Kama Sutra e o sexo tântrico.
Nolan expressa a dialética instituída entre duas pulsões. A única força capaz de fazer frente à pulsão de morte e destruição é a pulsão de vida e criação. A explosão em Trinity é um orgasmo de morte potencializado pela incerteza da destruição do mundo com a realização do teste. A própria bomba atômica, instrumento de morte e destruição em massa, carrega consigo essa ambivalência. Robert Oppenheimer sabia disso, mas acreditava que a pulsão de vida que a bomba carregava consigo “a bomba que põe fim à guerra, a bomba que mata milhares para salvar bilhões, a bomba que estabelece a paz mundial” prevaleceria. A ficha finalmente cai em razão de seu encontro com o presidente Truman, avatar da futilidade humana, quando Robert percebe que sua criação foi entregue de bandeja à pulsão de morte e destruição.
A última cena reitera essa visão. “I believe we did”. Oppenheimer não teria outra razão para coordenar o Projeto Manhattan que não fosse a perspectiva de salvar vidas, nem que fosse ao custo de alguns cadáveres do outro lado do globo. Seu amigo, Isidor Rabi, era mais sábio: “You drop a bomb and it falls on the just and the unjust.” Ele sabia que uma arma de destruição em massa, apesar de tudo, não poderia gerar outros frutos que não a destruição em massa, e a pulsão de morte e destruição não é criteriosa, ela não perdoa os injustos bem como não perdoa os justos. Ela não perdoa porque nós não perdoamos.
O contraste final é o homem, J. Robert Oppenheimer. Sua incompreensão do drama humano foi fomentada pela sua visão progressista e otimista da política e da história. Mesmo sendo testemunha de um mundo em frangalhos, Robert acreditava que aos quarenta e cinco do segundo tempo, a humanidade encontraria uma saída. Estava escrito. E ele acreditava fazer parte desse processo. Ele era a saída. Ele precisava cumprir o seu destino, assumir o papel que lhe foi imposto; assim como no Bhagavad Gita, Arjuna, ao seguir os conselhos de Krishna, assumiu seu lugar no darma e cumpriu o que lhe era determinado, para além de quaisquer custos. Mas Robert entregou a bomba a um mundo de homens como ele, de homens como nós. Homens que, independentemente de sua paixão pela vida, fatalmente são seduzidos pela morte.
As pistas sempre o acompanharam. Afinal de contas, Oppenheimer domou o átomo, mas não conseguiu domar sua libido.
Muito bom, gostei!